As palavras são de professores ouvidos pela AgĂȘncia Brasil em BrasĂlia e em São Paulo, que avaliam que o assunto proposto na redação do Enem permite aos alunos demonstrarem suas competĂȘncias textuais e refletirem sobre a realidade brasileira.
Professora de redação do SEB, em BrasĂlia, Analu Vargas avalia que o tema escolhido "propõe reflexão acerca do funcionamento da sociedade". "Estamos falando de uma necessidade de valorizar a herança da cultura africana. Isso abre bagagem para se abordar também preconceito, o racismo, que é um crime, e tratar de processos que chamamos de resquĂcios pós-escravidão."
A coordenadora e professora de redação do PB Colégio e Curso em São Paulo, Juliana Rettich, acredita que o Enem, com suas temĂĄticas de redação, tem carĂĄter pedagógico para toda a sociedade brasileira; e que este ano o Inep acertou novamente ao propor um tema que pode se transformar em pauta para reportagens de diferentes veĂculos de comunicação.
"Sabemos que temos trĂȘs matrizes culturais no Brasil, mas ainda vivemos sob o que podemos chamar de colonialidade, um regime de poder que continua a subalternizar os povos racializados, como os povos africanos. Nas nossas aulas de redação, trabalhamos a partir da perspectiva da descolonização e da decolonialidade, discutindo a problemĂĄtica dos currĂculos eurocentrados nas escolas e nas universidades. Diante disso, o nosso primeiro desafio é combater o epistemicĂdio, o assassinato do conhecimento, história e cultura produzidos pelos povos africanos e afrodiaspóricos", aponta a docente.
Coordenadora de redação e professora do Colégio Etapa, em São Paulo, Nayara de Barros, destaca que hĂĄ vĂĄrios tópicos a serem explorados no tema do Enem. "Os estudantes poderiam tratar do debate racial que tem havido no campo da educação. O próprio conceito de racismo estrutural poderia ser mencionado, em relação ao racismo como parte da estrutura social, um sistema que se manifesta nas relações polĂticas, econômicas e jurĂdicas, que vai se apresentar também como um desafio à valorização dessa herança nas mais diversas instâncias."
Colega de trabalho de Nayara no Etapa, Luiz Carlos Dias acrescentou que o assunto da redação também diz respeito aos Objetivos de Desenvolvimento SustentĂĄvel (ODS) das Nações Unidas. Segundo ele, o ODS 18 "prima pela igualdade étnico-racial".
"Então, para que haja a valorização da cultura africana, temos que entender que os povos africanos são marginalizados historicamente no Brasil, desde o mercado de escravizados", afirma o professor.
Para Hagda Vasconcelos, professora do Colégio Galois, em BrasĂlia, o tema "não surpreendeu" porque é uma "problemĂĄtica persistente" no Brasil. "O Enem é uma prova muito democrĂĄtica. É uma prova que coloca em questão aquilo que é necessĂĄrio ser discutido."
Na avaliação dela, os estudantes brasileiros estão preparados. "Nós temos de trabalhar a educação antirracista. Valorizar o personagem negro. Valorizar o cientista negro. Eu acredito que os meninos estão bem preparados, bem embasados para produzir esse texto", diz Hagda, considerando o conteĂșdo ensinado de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define as diretrizes e os assuntos que devem ser abordados em todas as escolas brasileiras – seja pĂșblica ou privada.
"Eu gostei muito do tema. É muito apropriado. É um tema que ampara as nossas discussões", avalia Gilmar Félix, professor de lĂngua portuguesa da Secretaria de Educação do Distrito Federal e também do Colégio Marista de BrasĂlia. O docente lembra que hĂĄ uma lei desde 2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de cultura africana, além da cultura indĂgena, nas escolas brasileiras.
"Nós, que somos do movimento negro e que somos professores, queremos uma legitimação desse ensino. O tema não vai ficar só na questão de falar de ensino da cultura africana, mas vai entrar na questão da educação antirracista", ressalta.
O docente, no entanto, aponta que "a sociedade tem uma dificuldade em lidar com o tema." E que a abordagem de assuntos em sala de aula pode variar de escola em escola e até conforme a disposição dos docentes. "Alguns professores não querem debater o tema. Na nossa sociedade ainda tem indivĂduos que mantĂȘm uma visão hierĂĄrquica, de achar, por exemplo, que o papel e o lugar do negro são sempre aqueles que teve ao longo da escravidão", lamenta.
Para Gilmar Félix, a redação do Enem, ao fazer os estudantes olharem para as heranças culturais africanas e a necessidade da valorização, "ajuda a desconstruir essa tendĂȘncia hierĂĄrquica."
O docente alerta que, caso algum aluno não tenha desenvolvido a proposta, ainda que escrevendo sem erros de portuguĂȘs e com argumentação, corre o risco de ser eliminado ou ter nota baixa por apenas ter "tangenciado o assunto."
"A competĂȘncia 2 e a competĂȘncia 3 [exigidas pelo Inep] vão cobrar justamente que ele trabalhe com repertórios legitimados. Não dĂĄ para o aluno vir com achismo. O bom repertório é aquele repertório que é legitimado."
A competĂȘncia 2 exige que o candidato interprete corretamente o tema e traga uma abordagem integral em relação a todas as palavras-chave contidas no tema e faça uma escolha adequada de repertórios capazes de contextualizar essa interpretação contida no tema. A competĂȘncia 3 é uma adequada formatação de um projeto de texto que prevĂȘ a construção de uma introdução que apresente o tema, a tese e os argumentos, que aborde a problematização no desenvolvimento e depois caminho para o desfecho de intervenção.
Fonte: AgĂȘncia Brasil